Segundo Massaud Moisés, o termo personagem “designa, no interior da prosa literária (conto, novela e romance) e do teatro, os seres fictícios construídos à imagem e semelhança dos seres humanos: se estes são pessoas reais, aqueles são ‘pessoas’ imaginárias; se os primeiros habitam o mundo que nos cerca, os outros movem-se no espaço arquitetado pela fantasia do prosador.” (MOISES, 1974, p. 396 Ou seja, os personagens de uma narrativa são os seres sobre quem a história é contada, que transitam nessa história.
O pesquisador Antonio Candido pontua que “quando pensamos no enredo, pensamos simultaneamente nas personagens; quando pensamos nestas, pensamos simultaneamente na vida que vivem, nos problemas em que se enredam, na linha do seu destino — traçada conforme uma certa duração temporal, referida a determinadas condições de ambiente (CANDIDO, p.51).
"Não espanta, portanto, que a personagem pareça o que há de mais vivo no romance; e que a leitura deste dependa basicamente da aceitação da verdade da personagem por parte do leitor". (CANDIDO, 1976, p.51)
Os trechos selecionados a seguir são do escritor Edward Morgan Forster, um romancista londrino do século XX, que se dedicou ao estudo sistemático da Literatura. Graças a ele, hoje falamos em termos de personagens planas e esféricas, categorias que serão muito úteis ao nosso estudo.
Qual é a diferença entre as pessoas de um romance a as pessoas como o romancista, ou vocês mesmos, ou eu próprio, ou a rainha Vitória?
(FORSTER, 2003, p.882)
Respondendo a essa pergunta feita por si mesmo, Forster pontua que:
“Tem de haver uma diferença. Se uma personagem de romance for exatamente igual à rainha Vitória – não parecida, e sim exatamente igual -, então ela é realmente a rainha Vitória, e o livro, ou todas as suas partes concernentes a esta personagem, deixará de ser um romance para se tornar um memorial. Um memorial é história, baseia-se em evidências. Já o romance se baseia em evidências + ou – x, sendo a incógnita o temperamento do romancista; e a incógnita sempre modifica o efeito da evidência, e às vezes até a transforma completamente” (FORSTER, 2003, p.882).
Aliás,
“O que é fictício num romance não é tanto a estória quanto o método pelo qual o pensamento se transforma em ação, um método que nunca se dá na nossa vida cotidiana. [...] A história, com a sua ênfase nas causas externas, é dominada pela noção de fatalidade, enquanto no romance não existe fatalidade; nele, tudo se funda na natureza humana, e o sentimento dominante é de uma existência na qual tudo é intencional, mesmo as paixões e os crimes, inclusive a miséria”. (BEAUX ARTS apud FORSTER, 2003, p.898)
Talvez este seja um modo de dizer com rodeios o que qualquer estudante colegial britânico sabe, que o históriador registra, enquanto o autor de romances deve criar. (FORSTER, 2003, p.898)
Apesar da questão "o que é um personagem" ser bastante ampla e, de certa forma, abstrata, Forster elocubra
“Então, em que sentido se distinguem os filhos da ficção daqueles que nascem sobre a terra? Não podemos fazer generalizações sobre eles, já que nada têm em comum do ponto de vista científico; não precisam de glândulas, por exemplo, enquanto os seres humanos têm várias. Contudo, apesar de não serem passíveis de uma definição mais estrita, tendem a se comportar segundo um molde” (Forster, 2003, p.969).
Segundo o escritor Edward Morgan Forster os personagens planos “na sua forma mais pura, são construídos ao redor de uma ideia ou qualidade simples; quando neles há mais do que um fator, apreendemos o início de uma curva na direção dos redondos”.
Forster usa um termo muito interessante para definir esses personagens, que são apresentados de forma unificada e constante ao longo da narrativa: gente bidimensional. É como se esses personagens, por não terem um desenvolvimento psicológico ou uma evolução sensível ao longo da trama, tivessem apenas duas dimensões, faltando a eles a profundidade necessária.
Dessa forma, os personagens planos não são complexos e também não apresentam nuances, desenvolvimento ou mesmo evolução em seus comportamentos ou características psicológicas. Eles são personagens estáveis em uma narrativa.
O Scar do filme O rei leão;
Joffrey Baratheon, em Game of Thrones;
Sauron, do Senhor dos Anéis;
Dumbledore, nos livros da franquia Harry Potter;
Princesa Caroço, da Hora de Aventura;
O agente Triplo X, no filme homônimo;
Ash Ketchum, do Pokémon;
Dona Florinda, Kiko, Seu Madruga e toda a turma do Chaves.
Perceba como todos esses personagens, por mais que tenham inúmeras histórias e aventuras não conseguem nos surpreender com uma mudança de comportamento e tampouco apresentam evolução
Por definição, os personagens redondos ou esféricos são os seres fictícios que apresentam complexidade e profundidade psicológica; aqueles capazes de surpreender por ações inusitadas; aqueles de quem não sabemos ao certo o que esperar. Ou seja, “concluímos que as suas características se reduzem essencialmente ao fato de terem três, e não duas dimensões; de serem, portanto, organizadas com maior complexidade e, em consequência, capazes de nos surpreender.” (CANDIDO, 1976, p.60). Nas palavras de Massaud Moisés, esses personagens são esféricos “porque ostentam profundidade psicológica, são tridimensionais, e porque evoluem, dinâmicas.” (MOISES, 1974, p.396)
Simba, de O rei leão;
Walter White, de Breaking bad;
Logan, no filme homônimo;
Frodo e Sméagol, em Senhor dos anéis;
O Capitão Nascimento, de Tropa de Elite;
Zé Pequeno, de Cidade de Deus;
O Coringa e o Batman;
A Malévola;
O Demolidor, Jessica Jones e Luke Cage, da série Defensores da Marvel;
João de Santo Cristo da música Faroeste Caboclo...
Ao contrário dos personagens planos, esses personagens aqui conseguem surpreender e suas ficções transmitem toda a complexidade e profundidade que eles têm.
“concluímos que as suas características se reduzem essencialmente ao fato de terem três, e não duas dimensões; de serem, portanto, organizadas com maior complexidade e, em consequência, capazes de nos surpreender.” (CANDIDO, 1976, p.60)
De acordo com Forster, "o teste de um personagem redondo é se ele é capaz de nos surpreender de maneira convincente. Se ele nunca nos surpreende, é plano. [O personagem redondo] Ele tem aquele jeito incalculável da vida – sua vida dentro das páginas de um livro” (Forster, 2003, p.1291)
Nesse episódio, Ana e Anna conversam sobre personagens, o que são, onde vivem e o que comem. Descem a lenha em Draco Malfoy e Amâncio Vasconcelos, dão alguns spoilers e várias risadas.
A etimologia (origem) do termo personagem aponta para a palavra pessoa e muitos teóricos afirmam que animais e seres inanimados NÃO podem ser personagens.
Mas, e a Baleia de Graciliano Ramos, o Marley de Marley e Eu, a Dory, de Procurando Nemo, cada um dos 101 dálmatas? Eles não são personagens? Eles agem numa história, interagem e têm características próprias bastante marcantes.
Massaud Moisés defende que, nesses casos, os animais (e isso também vale para objetos e todo o tipo de seres inanimados) agem como projeções das personagens humanas, como o Marley, funcionam para marcar uma inteligência superior à humana, como a Baleia ou a coruja Hedwig do Harry Potter, ou servem como gatilho para a ação (o teórico cita o caso da baleia Moby Dick, mas podemos pensar também no tubarão sinistro de Jaws). A Dory entraria junto com os animais das fábulas ou objetos dos apólogos: nesses casos, as características humanas se sobressaem tanto, que as outras características ficariam no terreno do simbolismo ou da metáfora.
E você, o que acha? O que a Lassie diria disso?