Entre as diversas acepções do termo “espaço” que o dicionário virtual Caldas Aulete oferece, encontramos que espaço é uma “extensão limitada, lugar determinado (inclusive em suas dimensões) que pode conter algo”. Em termos de narrativas, o espaço corresponde ao “onde”, ao “lugar” em que o evento narrado ocorre.
Assim como o tempo, o espaço é uma circunstância contextual da narrativa, porém, nem sempre o espaço é expresso ou explícito em um texto. Vamos fazer um teste com um enunciado retirado do conto “A cartomante”, de Machado de Assis:
“Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.”
O tempo aparece expresso nesse trecho através de desinências verbais (aquele pedacinho no final de um verbo que muda quando ele está no presente, em um dos pretéritos, etc) e por algumas palavras que têm o propósito de situar o tempo.
“Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.”
“Uniram, trouxe, mostraram, cuidou e tratou” são palavras capazes de nos contar além das ações que expressam, também que elas aconteceram no passado e que são ações terminadas no momento presente da narrativa. Porém, nem todas ocorreram ao mesmo tempo, já que a locução adverbial (você não precisa saber o termo técnico) “pouco depois” vai dizer para a gente que primeiro os três se uniram e começaram a ter intimidade, o falecimento da mãe de Camilo ocorreu quando a intimidade e a convivência já existiam. Sabemos também que os cuidados emocionais de Rita aconteceram simultaneamente aos cuidados práticos de Vilela, porque o texto embora não mostre um “enquanto” escrito claramente nessa parte, o que foi apresentado logo anteriormente dá base para que a gente pressuponha isso. O último verbo que aparece nesse trecho o “faria” dá a ideia de possibilidade e não de coisa feita, então nós sabemos que ele não passa de uma suposição.
Toda essa análise foi feita a partir de apenas sete palavrinhas (e, normalmente, nós fazemos isso de maneira inconsciente enquanto lemos), mas que foram capazes de nos situar temporalmente de forma bastante exata, apesar desse trecho não citar meses, dias, horas nem nenhum outro termo cronológico. Isso acontece porque nossa língua tem uma série de mecanismos internos a ela capazes de situar seus falantes no tempo, afinal de contas, não é por acaso que nós temos tantos tempos verbais e que nós o utilizamos sempre, mesmo em nossos enunciados mais básicos.
Porém, nossa língua não tem nada equivalente para situar o falante no espaço, tanto que muitas vezes, essa circunstância é apenas relevada. No mesmo trecho que lemos de “A cartomante” não há nenhum indício a respeito do espaço, ou seja, dos lugares onde ocorrem as ações narradas. Não há como saber se a mãe de Camilo foi enterrada na mesma cidade onde os três amigos moravam, ou em qualquer outro lugar do mundo.
Vamos analisar mais um trecho do mesmo texto do Machado:
“O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da Rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar, a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas.”
Nesse trecho, podemos notar um grande esforço do narrador em situar o espaço da narrativa. Primeiramente, ele determina não apenas a rua na qual a carruagem de Camilo parou, mas a altura da rua onde isso aconteceu. Nove palavras (nove!) para uma frase capaz apenas de dar uma indicação mais ou menos precisa a respeito do onde a ação ocorreu. Mais além nesse enunciado, o narrador adiciona três formas diferentes de estabelecer a mesma relação de proximidade que Camilo se encontrava da casa dessa cartomante: “ao lado”, “à esquerda”, “ao pé do tílburi” (carruagem). Em outras palavras, o narrador escolheu gastar mais oito palavras para falar algo que poderia ter sido expresso em apenas duas.
Estou chamando a atenção para a quantidade de palavras, porque nós conseguimos extrair muitas informações com as sete palavrinhas que indicavam circunstâncias de tempo, enquanto temos mais palavras e menos informações para as circunstâncias de lugar. Uma vez que a nossa língua naturalmente dá informações temporais, podemos concluir que não é um grande esforço inseri-las em enunciados, porque elas ocorrem naturalmente. Porém, a mesma lógica não se aplica para circunstâncias de lugar, sendo assim, quando nos damos ao trabalho de inserir esse tipo de dado em um enunciado é porque se trata de uma informação importante, ou relevante para o que está sendo expresso.
Assim sendo, se Machado de Assis gastou tempo e pena para basicamente dizer a mesma coisa três vezes é porque a ênfase na proximidade entre o personagem e a casa da cartomante é um dado significativo para a narrativa.
Em literatura, o espaço age integrado aos demais elementos da narrativa, e quando ele está presente ele é um elemento constitutivo de sentido. Por isso, não podemos deixar que ele passe despercebido.
O espaço físico em uma narrativa corresponde à ambientação, ao cenário em que ela acontece e por onde os personagens se movimentam. Ele é constituído pelos locais em que a ação se passa, correspondendo ao “onde” da narrativa. A ambientação de uma história pode contar com diversos espaços diferentes e estes podem ser abertos ou fechados.
Os espaços físicos abertos correspondem a locais mais amplos, como uma cidade, um campo, uma praia, enquanto os fechados são espaços mais restritos, como salas, quartos, etc.
O espaço social corresponde aos subgrupos e campos sociais entre os quais os personagens de uma narrativa transitam. Esse conceito também está relacionado aos extratos sociais e a suas representações.
O espaço psicológico corresponde ao interior do personagem, ao espaço abstrato onde o personagem mantém seu monólogo interior, ou seja, suas experiências e memórias, seus pensamentos e observações sobre seu mundo, seus devaneios, suas expectativas.