De maneira geral, poesia é um gênero literário que existe desde a antiguidade (esteve presente na Grécia antiga, na civilização romana e por aí). A grande característica que ainda consegue unir os poemas em suas mais diversas formas (afinal, o fazer poético evoluiu assim como o ser humano e a sociedade) é o uso da palavra de forma pensada tanto em suas possibilidades de significado, entrando aí toda a conotação possível, mas também suas possibilidades de forma, seja por seu desenho, por seu som, pelas suas capacidades rítmicas.
É comum nos referirmos a poesia, poemas, linguagem poética e tudo mais desse universo com o termo “lírico”. Etimologicamente, essa palavra vem do grego λυρικός e do latim lyrĭcus, que remete diretamente à lira, um instrumento de cordas utilizado pelos poetas para acompanhar musicalmente a declamação de seus trabalhos.
Poeminho do Contra
Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!
(Mario Quintana)
Sobre as possibilidades da palavra dentro de uma criação poética, podemos citar o “Poeminho do contra” de Mário Quintana. A grande sacada nesse poema é o jogo com os significados do termo “passarão”, que tanto pode ser o verbo “passar” na terceira pessoa do plural no futuro do presente do indicativo, quanto o grau aumentativo do substantivo “pássaro”. E é a polissemia (multiplicidade de sentidos de uma palavra ou locução) deste termo que abre espaço para o último verso, em que “passarinho” significa o diminutivo de pássaro, mas também pode remeter a uma forma de “passar” mais leve e delicada.
Aqui entramos em uma divisão importante para a análise de qualquer poema: FORMA e CONTEÚDO. Trataremos, em nossas análises, com essas duas dimensões do texto poético, sendo que “conteúdo” diz respeito às significações possíveis, que podem ser depreendidas do texto (lembrando que também faz parte termos que lidar com diversas possibilidades interpretativas). Isso ocorre porque, quanto mais aberto um texto é, mais formas de interpretá-lo temos. Já o estudo da “forma” irá nos instigar a buscar estruturas similares, ou seja, padrões na escrita. Nesse aspecto entram rimas, métrica, versos, estrofes e tudo o mais. Porém, é muito importante lembrar que, embora separemos os dois aspectos para entendê-los melhor, nunca podemos esquecer que os dois andam lado a lado, pois juntos determinam a interpretação final do poema. Imagine que um poema é um mapa a ser desvendado. Precisamos ficar atentos a todos os indícios possíveis para interpretá-lo da melhor maneira possível.
Antes de prosseguirmos, vale lembrar que o poema pode ser dividido em versos e estrofes. O verso equivale a cada “linha” do poema, já a estrofe é um aglomerado de versos, ou seja, aglomerado de linhas. Vale lembrar também que, quando um verso é muito longo para a página, ele é “quebrado”, e é colocado logo em baixo. Quando isso ocorre, utilizamos uma chave [ para indicar que o verso está dividido em partes.
Poema é o nome dado ao texto poético. Por exemplo “’poeminho do contra’ é um poema de Mário Quintana”. Já poesia é um nome mais amplo, que indica o gênero, a prática de fazer poemas. Por exemplo, “a poesia de Quintana me agrada”, o que quer dizer que a forma dele de escrever, que o conjunto das obras dele agradam.
“[...] o discurso literário é um discurso específico, em que a seleção e a combinação das palavras se fazem não apenas com a significação, mas também por outros critérios, um dos quais o sonoro” (GOLDSTEIN, 1990, p.5)
Uma das marcas mais importantes e conhecidas do gênero lírico é a presença usual da sonoridade quando os versos são declamados. Como esse costume é antigo, tanto sua presença quanto sua ausência são fatores importantes para a compreensão total do texto. Em seu livro O que é a comunicação poética, Décio Pignatari (um dos concretistas originais), explica como lidar com o ritmo em um poema. Acompanhe os ensinamentos de um dos mestres da poesia brasileira:
“Na prática poética, use o seu ouvido. Para os poemas sem versos, use também o olho. Sinta as pulsações. Leia poemas em voz alta. Poemas seus. E de outros. Grave no gravador. Ouça. Ouça. Torne a gravar. Ouça. Compare. Se precisar de mais de uma voz, chame os amigos.
1) Chega hoje da Europa o embaixador Moreira
2) Dança, dança, morena, imperatriz do samba
3) Sobre a triste Ouro Preto o ouro dos astros chove.
Reduzido a esqueleto, o ritmo pode ser tido como batidas de compasso, cadência, métrica. Nos três exemplos acima, temos praticamente a mesma métrica ou compasso — mas não temos o mesmo ritmo. A informação banal e prosaica da primeira frase não diz nada ao ouvido em matéria de ritmo. Na segunda, a informação também é comum, mas já atua ritmicamente. Na terceira — que é um verso de Bilac — o ritmo se impõe como figura, como ícone, para acompanhar uma informação pouco comum.” (PIGNATARI,2005, p 23-24)
Uma prática comum em poemas desde a antiguidade clássica – e que depois foi confrontada por movimentos modernos – era a de manter uma certa uniformidade de tamanho dos versos, para manter o ritmo do poema. Uma das maneiras mais eficazes de garantir o padrão, é cuidar para que cada verso tenha exatamente o mesmo número de sílabas poéticas. Esse tipo de sílaba baseia-se, sobretudo na sonoridade das palavras e na oposição entre sílabas tônicas e sílabas átonas, então nem sempre uma sílaba poética irá corresponder a uma sílaba da divisão silábica ortográfica.
Trazemos aqui um grande mestre da poesia, o Décio Pignatari, para nos ensinar um pouco melhor como funciona essa coisa de contar sílabas:
“Na tradição luso-brasileira, as numerosas possibilidades rítmicas costumam ser reduzidas a umas tantas regrinhas mais ou menos caretas, baseadas na acentuação silábica tônica ou forte (embora nem sempre o som, acento ou pé coincida com a sílaba). Elas são práticas para você obter um ritmo — digamos assim — automático. E para conhecer os versos dessa tradição.
Lembretes:
• a contagem das sílabas é feita até o último acento tônico ou forte;
• a sílaba terminada em vogal átona (fraca) faz elisão, emenda com a vogal átona seguinte, formando apenas uma sílaba;
• falamos de acentos obrigatórios — que não excluem outros.” (PIGNATARI, 2005, p.30)
Para conseguirmos compreender melhor esse papo de métrica e de escansão poética, vamos fazer uma contagem juntos, utilizando para isso a música "Do it", do Lenine. e você não conhece a música, assista ao clipe dela, porque, ah, é Lenine <3.
Em primeiro lugar, vamos compreender que a divisão da sílaba poética não é a mesma coisa da divisão ortográfica, que é aquela que fazemos desde que começamos aprender a ler. A divisão de sílabas poéticas tem suas próprias regras. Acompanhe comigo:
Seguindo a orientação de Pignatari, separamos as sílabas poéticas e contamos até a última sílaba tônica do verso. No caso do primeiro verso da música, contamos apenas até a sílaba “sen", pois “ta” é átona. Essa contagem até a última tônica destaca as sonoridades “en" no final de todos os versos. Então, se você reparar bem, a terminação palavra “entra” no quarto verso -tra pode não rimar perfeitamente com as outras terminações -ta. Porém, isso não é problema, pois a sílaba que mais se destaca em todas as terminações de versos é o som /en/, o que faz com que essa sonoridade domine.
No segundo verso, se você reparar bem, o som das palavras “se” e “acredita” conta como se elas estivessem grudadas. Isso porque uma das peculiaridades da escansão é a fusão (ou elisão) de sons vocálicos, mesmo que eles pertençam a palavras diferentes. Porém, isso não aconteceu com os versos subsequentes, de forma que “frio” e “esquenta”, “fora” e “entra”, “pediu” e “aguenta” não sofreram o mesmo efeito, porque há uma pausa entre elas do verso. Na escrita, a vírgula dá essa dica, já escutando a música, Lenine faz a pausa naturalmente em seu cantar.
Fazendo uma comparação entre as sílabas ortográficas e as poéticas, percebemos que existe um padrão de divisão silábica, mas que ele só aparece nas poéticas. Em termos práticos, esse padrão ajuda a construir o ritmo da música. Agora, se você não ouviu a música ainda, ouça e perceba como há um ritmo muito forte não apenas pelo acompanhamento musical, melodia e harmonia, mas também pelas palavras utilizadas na letra.
Norma Goldstein, em seu livro Versos, sons ritmos, define rimas como “parentesco sonoro” entre as palavras. Segundo sua definição, “rima é o nome que se dá à repetição de sons semelhantes, ora no final de versos diferentes, ora no interior do mesmo verso, ora em posições variadas, criando um parentesco fônico entre palavras presentes em dois ou mais versos” (GOLDSTEIN, 2005, p.44). Vejamos algumas possibilidades:
Rimas externas
“A rima externa ocorre quando se repetem sons semelhantes no final de diferentes versos” (GOLDSTEIN, 2005, p.45)
Abrindo um antigo caderno
foi que eu descobri:
Antigamente eu era eterno.
(Paulo Leminski)
Rimas internas
“Rima entre a palavra final de um verso e outra do interior do verso seguinte.” (GOLDSTEIN, 2005, p.45)
Lapsus linguae do candidato
sou um homem de ação
não de palavra
(José Paulo Paes)
Emparelhadas
Quando as rimas ocorrem em versos seguidos, em um esquema AABB.
Dicionário de rimas
“(...)C de caminho: (A)
Espinho (A)
Sobre espinho (A)
D de dever: (B)
Fazer (B)
Sem prazer(...)” (B)
(José Paulo Paes)
Interpoladas
Em um esquema ABBA, as rimas do tipo A são interpoladas, já as do tipo B são emparelhadas.
“De tudo, ao meu amor serei atento (A)
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto (B)
Que mesmo em face do maior encanto (B)
Dele se encante mais meu pensamento. (A)
(...)”
(Soneto de fidelidade, Vinícius de Moraes)
Cruzadas/alternadas
Quando alternam-se as rimas, em um esquema ABAB.
8 de agosto, dia dos pais
Metamorfose dois
Quando lhe veio à lembrança (A)
Que bicho é pai de bicho (B)
O pai de gregório samsa (A)
Juntou-se ao filho no lixo (B)
(José Paulo Paes)
Como a literatura é aberta à criatividade e às mais diversas experimentações (sentimentos, sensações, situações), é irresponsável colocar tudo o que está escrito nos poemas, nos contos, romances, etc, na conta do autor. Um escritor pode falar sobre como é matar sem nunca ter feito isso. Um poeta do gênero masculino pode simular uma voz feminina e vice-e-versa. Por isso, não podemos afirmar coisas a respeito das intenções do artista, de suas opiniões e visões de mundo quando vemos esse tipo de coisa em poemas ou obras ficcionais. Podemos afirmar apenas que o que está escrito na obra vai para a conta da voz dessa obra. Na poesia, chamamos essa voz de eu lírico. Nas narrativas, ela pode ser o narrador, e por aí vai. O autor experimenta, inventa, emula. O eu lírico afirma e se coloca na obra. Não confunda as coisas
Para que você consiga se apropriar melhor de todos esses termos técnicos e conceitos e também perceba como conectar o contexto de produção na sua análise, assista à videoaula sobre interpretação de poemas:
GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons e ritmos. São Paulo: Editora Ática, 2005.
PIGNATARI, Décio. O que é comunicação poética? São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.